Se você acha que o PT só prestou desserviços ao Brasil, não se dê ao trabalho de ler. O ponto deste texto é exatamente o oposto: o de que só agora, precisamente no dia 5 de outubro de 2014, a balança de bons e maus serviços finalmente pesou contra o PT.
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E não há uma conversa clara entre eles, que costumam ter prioridades e modos bastante diferentes, e mutuamente incompreensíveis e excludentes. Na verdade não há conversa alguma. A eleição de Lula fechou um pouquinho esse fosso, estendeu pontes. Provavelmente a grande habilidade de Lula tenha sido entender não a parte mais tribal e horizontal da sociedade (da qual, afinal, ele provém).
Mas exatamente o oposto: Lula foi o líder de extração popular (o primeiro a chegar à presidência) a entender as angústias e descompensações da nossa mal-formada (e mesmo deformada) elite. Com seu carisma e aval popular e simbólico, Lula realizou serviços impopulares (diria “impopulistas”) na economia, usando ferramentas da ortodoxia de mercado.
O equilíbrio e prosperidade que obteve, ele reinvestiu em programas de inclusão, bastante bem sucedidos (inclusive no sentido de criar uma dinâmica econômica saudável). Essa é a parte boa. O primeiro grande problema é que Lula passou a pensar em si mesmo como um líder “mágico” e infalível.
Não sou, absolutamente, inimigo da irracionalidade. Acredito em magia política – que, se chamarmos de “memética”, explica como grandes quantidades de energia psicossocial podem ser movidas, para transformar um país e se possível aproximá-lo de sua essência (sim, eu acredito que um país tem uma “essência”).
A do Brasil, no caso, é aquela chavinha macunaímica que nos mantém o tempo todo atados à genialidade e à mesquinharia mais absoluta; à generosidade e à miséria mais cruel. Como sabem os artistas, os neurocientistas e os argumentadores sutis, a distância entre os grandes acertos e os erros catastróficos é mínima, e o mais brilhante sucesso nunca se presta à analise moralista e linear.
Lula começou a errar quando escolheu Dilma. Não estava errado em imaginar uma mulher para sucedê-lo. Mas errou em enxergar esse equilíbrio entre pulso firme e inteligência emocional em Dilma. Como supostamente disse José Dirceu, era Marina o Lula de saias - ou, melhor ainda, o pós-Lula. Dilma é só o pulso firme.
O problema (para o país, mais do que para a própria Marina) é que as qualidades dela se parecem muito com defeitos, vistas com má vontade e preconceito, de uma lógica simplória e linear. Na verdade, a compreensão de Marina sobre os problemas brasileiros deriva do fato de que a confusão nacional começa DENTRO dela.
É o contrário do que esperamos desse ilusório político salvador. Ele, que entende de tudo (e isso é SEMPRE mentira; a boa política tem muito mais a ver com intuição e com saber se cercar dos colaboradores certos); ele, que brande números complexos com segurança fingida, é simplesmente uma síntese da nossa frustração com o fato de que não há uma saída líquida e certa para nada. O que há são tentativas, e o que nos resta é estar íntegro dentro delas, e pronto para a autocrítica e a correção desassombrada. E Dilma encarnou a “ele”, o salvador ilusório.
As incertezas, as inconsistências, os paradoxos de Marina são sua lucidez, sua sinceridade, sua coragem de mulher nascida pobre e negra, no meio da mata. Era ela o passo além de Lula, na direção do país que nos interessa.
Ao invés disso, Lula e o PT resolveram retirar seus créditos na forma de arrogância, chantagem e terror eleitoreiros. A ex-petista cujo projeto o PT deveria ter tratado com mais carinho, fraternidade e elegância (e inteligência política inclusive) foi tratada a pontapés. E acordar os demônios políticos a pontapés certamente não foi uma boa escolha. Foi uma escolha de fraqueza, não de força.
A posição de Marina já era delicada. Não por ela ser “indecisa”, como o PT afirmou. Mas por ter um discurso menos linear e mais difícil de sustentar e explicar. O PT descarregou todo seu arsenal de imprecisões, exageros e inverdades numa ex-companheira, uma ex-ministra de Lula. O efeito, além de ser politicamente emburrecedor, pode ser eleitoralmente burro.
O que o PT conseguiu, por enquanto, foi trazer um Aécio que já esteve rendido de volta, seguro, motivado e na ascendente. Perdeu-se a oportunidade histórica de ter no segundo turno duas mulheres, de um campo político socialmente mais generoso, no que seriam as eleições mais bonitas e politicamente qualificadas de toda a história do país.
Ao contrário, o PT resolveu provocar os piores instintos do eleitorado, mobilizar a ignorância e a imaturidade políticas da nação (essa mesma que, para falar só de São Paulo e das primeiras colocações, elege Russomanno, Bolsonaro, Maluf e Tiririca. Ou que reforça o grande percentual de votos nulos, brancos e abstenções). Era nesse sentido que Marina era o passo seguinte após Lula: o de trazer mais gente, para quem o coquetel sindicalista-católico-marxista do PT é incompreensível, senão inaceitável, para a conversa.
Ou quem simplesmente já enjoou do sistema como um todo. Esse paradoxo já estava presente nos protestos de junho de 2013. Ao escolher “derrotar” junho, junto com gente como Alckmin e “Cabrão” (Cabral + Pezão), ao invés de depurá-lo, o PT faz uma manobra arrogante e impensada, talvez suicida. O que a enorme transferência de votos de Marina para Aécio instantes antes da votação demonstra é óbvio.
Que, para um monte de gente, a prioridade é simplesmente barrar o PT. O PT “escolheu” Aécio ao invés de Marina. E, ao evitar lidar com uma figura híbrida cujo programa tinha traços neoliberais, mas cuja prática está enraizada nas camadas mais sofridas e solidárias da sociedade, o PT escolhe um Brasil conflagrado, venezualizado, o do “eles contra nós” (falsos eles contra falsos nós, pondo o barco de todos em risco).
Mais do que isso, o PT mentiu loucamente. Mentiu sobre a conveniência de se acreditar cegamente no petróleo do pré-sal, e do próprio petróleo como combustível prioritário; mentiu sobre Neca Setubal (na verdade Neca é tudo o que o Brasil precisa: gente egressa da elite econômica que simpatize com o ativismo social); mentiu até na semântica, ao negar que líderes como Chico Mendes constituem, sim, uma nova elite política crítica e necessária.
O PT fez escolhas políticas patriarcais, para quem gosta dos modos do patriarcado: apelo ao medo, à violência psicossocial, à manipulação. Confesso que, “enquanto comédia de erros”, acho engraçado o PT levar esse Aécio redivivo para o segundo turno. Será ainda mais engraçado se Aécio ganhar. Não deixa de ser uma demonstração bizarra de tudo que Marina tentou ensinar que tínhamos que evitar. O PT escolheu dar razão a quem acha que o PT é o maior problema do Brasil. Agora é, finalmente.