No imaginário Livro das Espécies, que, teimosamente, repousa na estante da história do futebol, os brasileiros figuram como macacos no mínimo há mais de noventa anos. Em 1920, ao disputarem o campeonato sul-americano no Chile, os integrantes da equipe nacional foram chamados de “macaquitos” por um jornal argentino. O Brasil se indignou, porém pelos motivos errados: para o governo, conforme se lê no apêndice do livro de Mario Filho (1908-1966), O Negro no Futebol Brasileiro, “a questão passava pela imagem que a República precisava construir de si própria, deixando para trás os vestígios ligados à escravidão e à miscigenação, em um momento em que os discursos em torno da eugenia eram imperativos”. O escritor carioca Lima Barreto (1881-1922), mulato e pobre, para quem o futebol era “eminentemente um fator de dissensão”, destacou, com ironia, em uma famosa crônica, que “a nossa vingança é que os argentinos não distinguem, em nós, cores; todos nós, para eles, somos macaquitos”. No domingo 27, o tal Livro das Espécies ganhou, infelizmente, uma nova edição - mas, pelo menos, revista e atualizada. E, com isso, uma versão 2014 do “todos somos macaquitos”.
Eram trinta minutos do segundo tempo do jogo Villarreal versus Barcelona quando o brasileiro Daniel Alves, titular da equipe azul e grená, se encaminhou para bater um escanteio. Uma banana, então, foi atirada em sua direção. O lateral - um baiano de 30 anos, pardo, como se diz nos censos, e de olhos verdes - reagiu de forma inesperada para o público e certamente também para o agressor: pegou a fruta, descascou-a e a pôs na boca.
Aquele era o oitavo caso de racismo nos gramados espanhóis somente na atual temporada. Teria sido alvo de tímidos protestos não fosse a reação irreverente do jogador brasileiro - e a entrada em cena do craque Neymar, seu companheiro de Barcelona e de seleção brasileira. Na noite do próprio domingo, o atacante postou três imagens em sua conta no Instagram. Na última delas, aparecia empunhando uma banana ao lado de seu filho, Davi Lucca - que, por sua vez, segurava uma providencial banana de pelúcia. Na legenda, o ex-santista escreveu a hashtag #somostodosmacacos em quatro idiomas: português, inglês, espanhol e catalão. Até a última quinta-feira, essa postagem havia recebido quase 580 000 curtidas, enquanto uma legião de celebridades - dos esportes, das artes, da política etc. - repetia o gesto em apoio a Daniel Alves. O que se soube depois é que a reação de Daniel contra a atitude racista do torcedor do Villarreal começou a nascer há um mês em conversas com Neymar. As insistentes agressões de teor racial fizeram acender uma luz vermelha entre os membros do estafe do atacante. Não era para menos: em 2010, o craque chegara a dizer que nunca havia sido vítima de racismo porque nem era negro. Preocupados com provocações racistas ocorridas no campeonato espanhol, o pai do atacante e Eduardo Musa, um de seus assessores mais próximos, procuraram a agência de publicidade Loducca, de São Paulo. “Eles me disseram que Neymar não poderia ficar quieto”, conta Guga Ketzer, vice-presidente de criação e sócio da Loducca, que bolou a hashtag usada pelo jogador. “Foi uma ação pro bono", garante Ketzer.